sábado, 23 de fevereiro de 2008

As chuteiras sem pátria

Nunca fui muito fã do futebol. Com aqueles noventa minutos acho que poderia aproveitar com os livros.
Ontem, ao terminar o livro do Arnaldo Jabor (Pornopolítica) uma das crônicas chamou-me à atenção. Trata da última copa do mundo.
Eu sei que é meio chato colocar um texto de outrem, mas esta crônica realmente vale a pena.


As Chuteiras sem Pátria

Quando chega um fax com barulhinho de cornetas celestiais, eu já sei: é carta do Nelson Rodrigues. Não deu outra. Nelson me pedia para publicar um texto sobre a Copa, já que estava sem contato nos jornais: “Eu sou do tempo do Pompeu de Souza, do Prudente de Morais Neto... Não conheço esses meninos da redação...” Muito bem, aqui vai seu comentário sobre o sábado da desgraça:

“Amigos, a derrota é um grande momento de verdade. Só diante da vergonha é que entendemos nossa miséria. Num primeiro momento, queremos encontrar uma explicação para o fracasso, mas fracasso não se improvisa – é uma obra calculada, caprichada durante meses, anos até. Não adianta berrar no botequim que o Parreira é uma besta ou que o Ronaldo é um gordo perna-de-pau. Não. Nosso fracasso começou antes, porque esta seleção não foi a pátria de chuteiras; foram as chuteiras sem pátria.
Para nossos jogadores ricos e famosos, o Brasil é a vaga lembrança da infância pobre, humilhada. O país virou um passado para os plásticos negões falando alemão, francês, todos de brinco e com louras vertiginosas. Não são maus meninos, ingratos, não; mas neles está ausente a fome nacional, a ânsia dos vira-latas querendo a salvação. O povo todo estava de chuteiras, para esquecer os mensalões e os crimes, mas nossos craques não perderam quase nada com a derrota; tiveram apenas um mau momento entre milhões de dólares e chuteiras douradas pela Nike.
Isso me faz lembrar o grande Nenen Prancha do Botafogo: ‘Temos de ir na bola como num prato de comida!...’ Que frase profunda, esquecida hoje... Nosso time come bem e nem os jogadores nem os técnicos, nem os roupeiros e massagistas viram o óbvio, ali, uivando, ululando nos vestiários: o time estava sem conjunto, os jogadores estavam presos a um esquema tático que contrariava suas vocações. Só o povo berrava: ‘Ronaldo está gordo, Ronaldinho tem de atuar mais livre, os jovens têm de jogar mais!’ E, quanto mais o óbvio se repetia, mais o Parreira se obstinava em sua lívida teimosia... Por quê? Porque o técnico é sempre contra a opinião geral. Em vez de orientar as vocações dos rapazes, ensinando-lhes a liberdade, a coragem e o improviso, o Parreira achou que todos têm de caber em sua estratégia. O pior cego é o surdo. E jogador brasileiro não gosta de lei nem de planejamentos; quer inventar sozinho. O técnico devia ser um reles treinador, quase um roupeiro, humilde diante dos craques. Mas o Parreira parecia um ‘Mussolini’ de capacete e penacho. Teve vários sinais de tirania: só dava a escalação no vestiário, com os jogadores mal dormidos, na insônia da dúvida da convocação, não teve coragem de barrar as estrelas, como se fosse uma afronta ao passado e às multinacionais. Ronaldo fez gols, tudo bem, mas foi uma âncora pesada desde o início, em torno da qual os problemas giraram. Parreira ficou com medo dos jovens e eu via em seus rostos o desespero do banco. Robinho arfava de rancor e só entrava quando era tarde demais. Robinho foi o único que chorou no final, ainda menino e puro. Quem teve a mãe seqüestrada sabe o que é tragédia. E, para escândalo do país, Robinho ficou de castigo.
Ao final de tudo, Parreira disse a frase suicida: ‘Não estávamos preparados para perder!...’ Isso é a morte súbita, isso é a guilhotina. Sem medo, ninguém ganha. Só o pavor ancestral cria uma tropa de javalis profissionais para a revanche, só o pânico nos faz rezar e vencer, só Deus explica as vitórias esmagadoras, pos nenhum time vence sem a medalhinha no pescoço e sem as ave-marias. Mas Parreira ignorou a divindade e acreditou em sim mesmo, com a torva vaidade de uma prima-dona gagá, com pelancas e varizes.
Isso era o óbvio, mas foi ignorado. E quando o óbvio é desprezado, ficamos expostos ao sobrenatural, ao mistérios do destino. Por exemplo, por que começamos o jogo como um corpo de bailarinos eufóricos e, 15 minutos depois, ficamos paralíticos como sapos diante de cascavéis, como Zidane dando chapéus no Ronaldo? Será que diante da “Marselha” sofremos um pavor reverencial? Em 98, Ronaldo caiu em convulsões de cachorro atropelado no vestiário. E agora? No sábado não estávamos com medo da França, não; o que tivemos foi medo de nós mesmos, voltou-ns o complexo de vira-latas, inibidos como vassalos diante do Luis XIV, de sapato alto e peruca empoada. Foi assim em 98 e agora. A França é muito chique para filhos do Capão Redondo e de Bento Ribeiro.
Mas quem ganha e perde as partidas é a alma. E a nossa estava dividida entre o match e a linha de passe, entre o show e a vitória. Houve o episódio da meia do Roberto Carlos, que um segundo antes do gol da França estava ajeitando a liga como uma Madame Pompadour. Pelé notou o descuido frívolo e trágico, pois guerreiro furioso não conserta a roupa na batalha. Esse pequeno gesto revelou equívocos fatais, teorias e teimosias.
Outra coisa que nos matou foi a torcida. Nunca houve uma torcida tão desesperada por uns minutos de paraíso, de brilho. Foi diferente de 1950. Lá, sonhávamos com um futuro para o país. Agora, tentávamos limpar nosso presente. Explico: somos uma nação de humilhados e ofendidos, debaixo da chuva de mentiras políticas, violência e crimes sem punição. Descobrimos que o país é dominado por ladrões de galinha, por batedores de carteira e pelos traficantes. Por isso, a população queria que o scratch fizesse tudo que o Lula não fez. Mas era peso demais para os rapazes. A 10 mil quilômetros, os jogadores ouviam os gemidos ansiosos das multidões de verde-e-amarelo, como uma asma patriótica. Não esperávamos uma vitória, e sim uma salvação. Só a taça aplacaria nossa impotência diante da zona brasileira, a seleção era nossa única chance de felicidade. Queríamos a taça para berrar ao mundo e a nós mesmos. ‘Viram? Nós brasileiros somos maravilhosos!’
Mas não deu. E só”



(JABOR, Arnaldo. Pornopolítica – paixões e taras na vida brasileira. Editora Objetiva: Rio de Janeiro, 2006.)

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