sexta-feira, 9 de maio de 2008

O Conhecedor

A primeira condição para se escrever um bom policial inglês, eu sei, é ser inglês, mas isso não me detém. Afinal, a primeira condição para ser cronista do JB é dominar o português e isso também não me detém. Aqui vai mais uma cena do livro que estou escrevendo e que só será publicado quando eu me mudar para Londres, trocar meu nome para Nigle ou Trevor e me dedicar à autoflagelação em algum úmido porão de Mayfair, entre goles de brandy com soda. Leia-se com a apropriada entonação de Eton.
Lorde Graverly passou a caixa de charutos entre os convidados. Do esplêndido jantar que tinha servido sobraram apenas algumas manchas na toalha de linho branco, os copos vazios das três variedades de vinho e um ar de profunda satisfação no rosto de cada um. Era aquele mágico instante que vem depois da retirada das mulheres para a sala e antes de servirem o porto, em que o império floresce de novo sobre a mesa e os homens agradecem a Deus por serem ingleses. Lorde Graverly esperou que todos provassem o porto antes de falar.
- Então - disse o corpulento lorde, apontando para Peter com seu charuto aceso, que ele segurava como um dardo - você é o famoso cientista, expert em manuscritos iluminados da era bizantina e na vida de Mae West, criptógrafo, agente nem tão secreto do governo de Sua Majestade, famoso pelas suas aventuras, inclusive amorosas, maior especialista vivo em peixes tropicais, fluente em dezessete línguas vivas, quatro mortas e duas semiconscientes, detetive amador com a reputação de jamais ter deixado de desvendar um caso, Peter Vest-Pocket?
- Não - respondeu Peter, sorrindo.
- Como não? Me disseram que...
- Sou expert em manuscritos iluminados da era pré-bizantina. O resto está certo.
Todos riram mas o riso acabou em tosses embaraçadas e goles extemporâneos de porto, pois o anfitrião mantivera-se sério. Seus olhos fixos no rosto de Peter eram como duas pistolas prestes a disparar. Lorde Graverly não achara graça.
Era um homem conhecido por duas coisas: sua fortuna e sua crueldade. A fortuna tornara-se menor e menos ameaçadora com o passar dos anos e os impostos progressivos, o que só aumentara a sua crueldade. Lorde Graverly possuía minas na África, plantações na América do Sul, a maior adega particular da Inglaterra e vinhedos na França, mas sua mulher o abandonara e desaparecera para sempre, na certa incapaz de agüentar seus caprichos. Um dia Lorde Graverly desembarcara em Londres, vindo da França, sem a mulher, e ninguém tivera a coragem de perguntar por ela.
Homem de muitos comensais mas pouquíssimos amigos, Lorde Graverly debruçou-se sobre a mesa para dirigir-se ao seu mais recente inimigo. Se sua voz pudesse ser engarrafada teria de ser mantida longe de crianças. Estava carregada de veneno.
- Me disseram também que você é um grande conhecedor de vinhos. O melhor que há.
- O senhor é um homem bem informado, Lorde Graverly.
- E você, meu amigo, é um farsante.
Os outros, que freqüentavam a Mansão Graverly pela comida e plas pequenas generosidades que o anfitrião lhes atirava, de vez em vez, como migalhas, prenderam a respiração. Que homem intragável! Mas Peter manteve-se calmo. Ainda sorria.
- Vou provar que você é um farsante - continuou Graverly. - O vinho que tomamos hoje com o carneiro, e que apresentei como sendo um Saint-Emilion 47, e que você elogiou tão efusivamente, não era nada disso.
Todos os olhos se voltaram para Peter.
- Meu caro Graverly - disse Peter -, eu notei antes mesmo de levar o vinho à boca, pela cor, que não era um Saint-Emilion. Pelo bouquet notei que não era nem um Bordeaux. Tive, no entanto, a decência de não desmascará-lo. Se o senhor quer servir vinho inferior a seus convidados e mentir quanto à sua origem, o problema é seu.
- Isso você está dizendo agora para salvar a cara!
- De maneira nenhuma. Posso identificar o vinho que tomamos. É um produto do seu próprio vinhedo na região de Leporace, uma péssima região para tintos, por sinal. Feito com uvas da encosta leste da colina de Givenchy-sur-Lac, da colheita de 1963, um bom ano para a região em geral mas muito ruim para os seus vinhedos, devido ao solo muito maltratado. Notei, pelo sabor, o excesso de material alcalino no solo. E notei outra coisa.
Lorde Graverly parecia que inchava à medida que Peter falava. Mas Peter não parou.
- Demorei a identificar o que seria esse outro componente do sabor. Foi por isso que me forcei a aceitar outro copo do seu lamentável vinho. Finalmente, identifiquei o estranho sabor. É de osso, meu lorde. Osso humano. De uma pessoa do sexo feminino, provavelmente inglesa e eu diria - mas claro que posso estar errado - da região de Sussex, enterrada ali por volta de 1961.
E todos lembraram que a mulher de Graverly era de Sussex, quase certamente do sexo feminino, que desaparecera em 1961, que o próprio lorde fora o último a vê-la com vida e que, pensando bem, o assassinato não estava fora de questão.
Mas Lorde Graverly mudou de assunto.

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Essa é uma das crônicas do livro Ed Mort & outras histórias (edição de 1976) do Luis Fernando Veríssimo. Consideravelmente, acho um dos melhores escritores do Brasil e agora, ele tornou-se um amigo para mim, mas um amigo mesmo. Há quase dois meses que estou mantendo contato com ele.
Dentro em pouco, vocês saberão porque.

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